Carta Est Sane Molestum de Leão XIII: Da Observância Devida aos Bispos

CARTA DE LEÃO XIII

AO ARCEBISPO DE TOURS; PELA QUAL ALGUNS
AUTORES DE JORNAIS SÃO ADVERTIDOS ACERCA DA OBSERVÂNCIA
DEVIDA AOS BISPOS, COMO PASTORES DO REBANHO DOS FIÉIS*


É, sem dúvida, penoso e grave aplicar com mais severidade àqueles que são amados no lugar de filhos: todavia, é necessário que isso às vezes o façam, ainda que contra a vontade, os que devem santamente procurar e proteger a salvação dos outros. E a necessidade de severidade é tanto maior, quando se teme, não sem motivo, que com o decorrer do tempo surjam males ainda mais graves, e que mais amplamente se propaguem para ofensa dos bons.

Tais causas te pareceram, venerável irmão, ter-te há pouco impelido, a que, segundo a tua autoridade, censurasses certo escrito, deveras repreensível, o qual era injurioso à sagrada autoridade dos bispos, e não visava um só dentre eles, mas a muitos: cuja maneira de agir e de governar fora descrita com estilo acerbo e quase levada a julgamento, como se tivessem faltado a ofícios máximos e santos. — De fato, de nenhum modo é tolerável que homens leigos, católicos de profissão, se arroguem abertamente nas páginas dos jornais tanto poder, que julguem e sustentem que lhes é lícito julgar e exprimir-se livremente, conforme lhes parecer, acerca de quaisquer pessoas, nem mesmo excetuando os bispos: que em todas as coisas, exceto naquelas que tocam à fé divina, seja-lhes permitido pensar como quiserem, e cada qual agir segundo seu próprio arbítrio. — Em tal causa, não pode haver, venerável irmão, por que duvides de Nossa adesão e aprovação. Pois é sumamente próprio de Nosso múnus vigiar e esforçar-Nos para que o poder divino dos bispos permaneça totalmente incólume e inviolado. Nosso é igualmente o dever de ordenar e fazer com que esse poder em toda parte floresça com sua devida honra, e que por parte dos católicos não falte em parte alguma a devida obediência e reverência. Com efeito, o edifício divino, que é a Igreja, verdadeiramente se apoia, como em fundamento visível, primeiramente em Pedro e seus sucessores, e proximamente nos Apóstolos e nos bispos, sucessores dos Apóstolos: aqueles que os ouvem ou desprezam, procedem como se ouvissem ou desprezassem o próprio Cristo Senhor. Dos bispos consta a parte da Igreja de longe mais augusta, a qual, por certo, ensina e governa os homens por direito divino: e por essa razão, quem quer que lhes resista, ou recuse com pertinácia prestar-lhes obediência, esse mais e mais se afasta da Igreja (Mt 13, 17). — Nem se deve conter a obediência, como que dentro de limites, às coisas que pertencem à fé cristã, mas deve ser muitíssimo mais ampliada, a saber, a todas as coisas que a potestade episcopal abarca. São eles, por certo, no povo cristão, mestres da santa fé, mas também presidem como governantes e guias, e presidem de tal modo, que acerca da salvação dos homens a eles confiados por Deus, hão de prestar um dia conta a Deus. Donde procede aquela exortação do Apóstolo Paulo aos cristãos: obedecei aos vossos superiores e sede-lhes sujeitos; pois eles vigiam como quem há de prestar contas das vossas almas (Hb 13, 17). — É, com efeito, claro e manifesto que há na Igreja dois estados de homens, um distinto do outro por sua natureza: os pastores e o rebanho, isto é, os governantes e a multidão. É função do primeiro estado ensinar, governar, moderar a disciplina da vida, dar preceitos: ao segundo, porém, compete estar sujeito, obedecer, seguir os preceitos, prestar honra.

Ora, se aqueles que devem estar sujeitos tomam para si os encargos dos que pertencem à ordem superior, esses não somente agem temerária e injustamente, mas, quanto está em seu poder, pervertem desde a raiz a ordem estabelecida com suprema providência por Deus, autor da Igreja. — Se, porém, porventura se encontrar alguém no próprio corpo episcopal, não suficientemente cônscio de sua dignidade, o qual pareça ter, de algum modo, abandonado a religião do seu ofício, ele, por essa razão, nada perderia de sua autoridade; e enquanto conservar a comunhão com o Romano Pontífice, decerto a ninguém seria lícito, com base nisso, diminuir-lhe a reverência e a obediência devida. Pelo contrário, inquirir nos atos dos bispos e repreendê-los, de modo algum compete a particulares: isso, na verdade, compete unicamente àqueles que, na ordem sagrada, os precedem em autoridade, especialmente ao Sumo Pontífice, a quem Cristo confiou para apascentar não apenas os cordeiros, mas também as ovelhas, por quantas houver espalhadas por toda parte. Em última instância, se houver alguma grave causa de queixa, é permitido remeter toda a questão ao Romano Pontífice; mas com cautela e moderação; conforme o exige o zelo pelo bem comum, não com clamor e recriminações, modos pelos quais dissensões e ofensas mais verdadeiramente se geram ou, ao menos, se agravam.

Estes pontos capitais, que são os principais e não podem ser subvertidos sem que o governo da Igreja seja lançado em grande confusão e perturbação, mais de uma vez tivemos por dever recordar e inculcar. Falam suficientemente, tanto a carta dirigida ao Nosso legado na França, por ti novamente e oportunamente publicada, como também outras dirigidas sucessivamente ao arcebispo de Paris, aos bispos da Bélgica, a alguns da Itália, e duas Cartas Encíclicas aos bispos da França e da Espanha. Estes mesmos documentos tornamos a recordar, tornamos a inculcar, confiados numa grande esperança de que, por força de Nossa advertência e autoridade, os ânimos excitados entre vós nestes dias venham a ser serenados, e todos se confirmem e repousem na fé, na obediência, na justa e devida reverência àqueles que são revestidos da sagrada potestade na Igreja. — Dos quais deveres, com efeito, não se deve julgar que se desviam apenas aqueles que, de rosto descoberto, rejeitam a autoridade dos governantes, mas também os que a ela se opõem e resistem com astúcia, tergiversando e mediante conselhos oblíquos e dissimulados. A verdadeira e não fingida virtude da obediência não se contenta com palavras, mas consiste principalmente no ânimo e na vontade. — E visto que se trata da culpa de certo periódico, de modo algum podemos deixar de advertir novamente os autores das publicações católicas, que reverenciem como leis sagradas os documentos e prescrições acima referidos, e de nenhum modo delas se afastem. Tenham ainda estes firmemente gravado e persuadido em seus ânimos que, se em algum lugar ousarem transgredir aquele propósito, e entregarem-se ao próprio juízo — seja antecipando-se ao que a Sé Apostólica ainda não julgou, seja ofendendo a autoridade dos bispos, ou arrogando-se a si mesmos a que não possuem —, em vão por completo confiarão em conservar o autêntico louvor do nome católico, ou de algum modo poder aproveitar à causa santíssima e nobilíssima, cuja defesa e promoção abraçaram. — Ora, desejando Nós intensamente que retornem à sanidade todos os que erraram, e que a obediência aos sagrados pastores penetre profundamente em todos os corações, concedemos, no Senhor, a bênção apostólica — testemunho de paternal benevolência e caridade — a ti, venerável irmão, e a todo o teu clero e povo.

Dado em Roma, junto a São Pedro, no dia 17 de dezembro do ano de 1888, no onzeº ano de nosso pontificado.

LEÃO PP. XIII

*ASS, vol. XXI (1888), pp. 321-323.

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