HOMILIA DE JOÃO PP. XXIII PROFERIDA NO DIA DA COROAÇÃO - 4 de novembro de 1958

 HOMILIA DE JOÃO PP. XXIII

PROFERIDA NO DIA DA COROAÇÃO

4 de novembro, ano de 1958

Veneráveis Irmãos Cardeais da Santa Igreja Romana,
Arcebispos, Bispos,

que ou estais presentes em pessoa ou presentes em espírito a estes sagrados ritos, com os quais Nós, embora indignos, solenemente iniciamos o gravíssimo encargo do Sumo Pontificado; assim também todos vós, quantos quer que sejais no orbe católico da terra, filhos caríssimos pertencentes às mais diversas classes de cidadãos, os quais, embora oprimidos por tantos cuidados e angústias desta vida mortal, não estais esquecidos dos bens eternos, aos quais principalmente se deve dirigir o olhar: saudamos-vos com paternal e muito afetuoso espírito.

Reunimo-nos junto aos quase máximos monumentos do Príncipe dos Apóstolos, a quem foi confiado o supremo múnus, transmitido agora a Nós enquanto seu Sucessor; e a voz de Pedro nesta hora memorável parece soar em nossos ouvidos, como que atravessando o curso dos séculos; também de bom grado acolhemos a voz de ambos os João, que estiveram e estão mais próximos do Divino Redentor, e cujo nome suave e honroso nos aprouve assumir.

Nestes dias, contudo, cheios de eventos misteriosos e de trepidação, enquanto prestamos nossos ouvidos às inumeráveis vozes que nos chegam das multidões humanas, se por um lado os sentimentos e manifestações de comum alegria com que foi saudada nossa elevação ao Sumo Pontificado nos trazem não pouco consolo, por outro lado, a múltipla variedade das enormes incumbências que pesam sobre nossos ombros torna nosso ânimo incerto e ansioso; referimo-nos aos encargos que, de diversos modos, nos são indicados, e que uns propõem de um modo, outros de outro, dentro de certos e definidos limites, conforme a índole de cada um, a experiência nas coisas a serem feitas e a particular maneira pela qual cada qual compreende a vida dos indivíduos ou da própria sociedade.

Com efeito, há aqueles que preferem sobretudo que o Pontífice esteja envolvido nos negócios públicos dos Estados, ou que seja perito na diplomacia, ou que possua o conhecimento de todas as disciplinas, ou que seja prudente na organização da vida comum de todos, ou finalmente, um tal Pontífice cujo ânimo abrace todos os progressos da era moderna, sem fazer qualquer discriminação necessária.

No entanto, Veneráveis Irmãos e dilectíssimos filhos, todos esses de modo algum seguem aquele caminho que se deve trilhar, quando formam para si uma imagem do Sumo Pontífice que, com reta intenção e propósito, não está plenamente de acordo.

Com efeito, o novo Pontífice pode, por suas vicissitudes de vida, ser comparado àquele filho do Patriarca Jacó, que, acolhendo seus irmãos profundamente aflitos por gravíssimas tribulações, se mostrou a eles como quem os ama e os consola, dizendo: “Eu sou... José, vosso irmão” (1). O novo Pontífice, dizemos, representa antes de tudo aquela preclaríssima imagem evangélica, na qual o Bom Pastor é descrito por João Evangelista com aquelas palavras que fluíram da boca do divino Salvador (2). Ele é a porta do redil: “Eu sou a porta das ovelhas” (3). Neste redil de Jesus Cristo, ninguém pode entrar senão conduzido pelo Sumo Pontífice; e somente quando a ele estão unidos, os homens podem ser salvos com segurança, pois o Pontífice Romano é o Vigário de Cristo, e representa sua pessoa na terra. Quão doce, quão suave é repetir em pensamento aquela imagem do Bom Pastor, descrita na narração evangélica com palavras tão requintadas e atrativas!

Veneráveis Irmãos e dilectíssimos filhos, fazemos nossas aquelas exortações que os Romanos Pontífices, sobretudo nosso imediatíssimo Predecessor, Pio XII, de imortal memória, publicaram sobre esta matéria de todos os tempos; e afirmamos isso de modo muito significativo: que nos está de modo especialíssimo no coração exercer o encargo de Pastor de todo o rebanho. Todos os demais adornos e louvores do espírito humano — a saber, a doutrina, a prudência nas coisas a realizar, a habilidade diplomática, a perícia na organização dos assuntos — podem certamente completar e enriquecer este mesmo múnus pastoral, mas de forma alguma podem substituí-lo.

Com efeito, ocupa lugar principal o zelo e a solicitude do Bom Pastor, que esteja pronto a empreender as coisas mais difíceis, que brilhe pela prudência, retidão e constância, nem tema o mais grave perigo. “O bom pastor dá a sua vida pelas ovelhas” (4). Com quanta beleza resplandece a Igreja de Cristo, “o redil das ovelhas” (5). O pastor “vai adiante das ovelhas” (6), a quem todas seguem. Para defendê-las, ele não teme enfrentar o lobo que ataca. Mas já o pensamento é chamado a considerações mais amplas: “Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil; também a essas devo conduzir, e ouvirão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor” (7). Vede, sem dúvida, nestas palavras expressa a amplitude e a nobreza de toda a causa missionária. Esta é, com efeito, a primeira — embora não a única — solicitude do Pontífice Romano: pois a ela se unem muitas outras preocupações, que não são de menor peso. Mas mais importante que saber o que se faz, é conhecer com que inspiração e intenção se faz. Pois cada Sumo Pontificado recebe os seus traços e como que uma fisionomia própria do Pontífice Máximo que o exerce, e a ele imprime uma característica singular. Seja, porém, certo o seguinte: todos os traços dos Pontífices Romanos, que ao longo dos séculos sucederam no cume do poder apostólico, devem refletir-se, ou antes, devem ser refletidos no rosto de Cristo, o Divino Mestre, que percorreu os caminhos terrestres precisamente para lançar a luz da doutrina celeste e do exemplo mais excelso.

Ora, o eixo principal e o mandamento das instituições divinas, o qual compreende e impulsiona todos os demais, são estas palavras evangélicas: “Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração” (8). Grande, pois, é a lei da mansidão e da humildade. Vós todos, que pela terra sois piedosos e “fervorosos de espírito” (9), rogai com contínua insistência a Deus pelo vosso Pontífice, com esta intenção nas vossas mentes, que ele possa progredir cada vez mais na mansidão e humildade evangélica. Estamos persuadidos de que muitos e grandes frutos hão de provir do exercício desta virtude, e que, se tal for o constante costume do Pai de todos os fiéis, grandíssimos benefícios advirão, inclusive na ordem das relações humanas, que dizem respeito às questões sociais e temporais.

Finalmente, apraz-nos, Veneráveis Irmãos Cardeais e Bispos da Santa Igreja Romana, e dilectos filhos Sacerdotes e Fiéis de Cristo, dirigir vossas mentes a um assunto que nos é agradabilíssimo, isto é, recordar que esta celebração coincida felizmente com um dia que com suavíssima recordação toca nosso ânimo de sacerdote e de bispo.

Com efeito, nesta festividade, 4 de novembro, dia em que doravante se recordará a coroação do novo Sumo Pontífice, a Igreja universal celebra anualmente, na sagrada liturgia, a solenidade de São Carlos Borromeu. A esse Arcebispo de Milão, a ser contado entre os sumos pastores do rebanho, já há tempo nos une uma especial relação de amor. Pois há trinta e quatro anos, no templo a ele consagrado em Roma, onde é venerado seu coração, preciosíssima relíquia, fomos, com augusto rito da Igreja, incorporados ao número dos Arcebispos.

Sabeis que a Igreja de Deus, ao longo das vicissitudes do tempo, por vezes perdeu algum vigor, mas logo voltou a reunir novas forças. Quando, portanto, era necessário prover à ordem eclesiástica em declínio, São Carlos, por desígnio da Providência divina, foi elevado ao mais alto ofício de restaurá-la. Tendo ele envidado todos os esforços para que os decretos do Concílio de Trento vigorassem o quanto antes, e cuidando ele próprio de os aplicar na prática, em Milão e em outras dioceses da Itália, com seu exemplo, foi com mérito chamado com o preclaríssimo nome de Mestre dos Bispos; os Sumos Pontífices o tomaram como conselheiro; ele se apresentou de maneira admirável como exemplo de santidade episcopal.

Na sagrada cerimônia que se celebra pela coroação do Sumo Pontífice, é lícito inserir nas ladainhas os nomes dos Santos do Céu, que o novo Sumo Sacerdote venera com especial devoção. Por isso, quando hoje foi pronunciada esta súplica: “São Carlos, ajuda-o tu”, sem dúvida vossas almas inflamadas simultaneamente elevaram votos, pelos quais São Carlos, comovido, obterá para nós copiosamente os dons celestes — a ele que temos por Patrono, cuja proteção agora usufruímos e confiamos usufruir no futuro. Amém.

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